quarta-feira, 4 de abril de 2012

OS TRABALHOS DA MÃO


OS TRABALHOS DA MÃO
Alfredo Bosi

"Parece ser próprio do animal simbólico valer-se de uma só parte do seu organismo para exercer funções diversíssimas. A mão sirva de exemplo.
A mão arranca da terra a raiz e a erva, colhe da árvore o fruto, descasca-o, leva-o à boca. A mão apanha o objeto, remove-o, aconchega-o ao corpo, lança-o de si. A mão puxa e empurra, junta e espalha, arrocha e afrouxa, contrai e distende, enrola e desenrola; roça, toca, apalpa, acaricia, belisca, unha, aperta, esbofeteia, esmurra; depois, massageia o músculo dorido.
A mão tacteia com as pontas dos dedos, apalpa e calca com a polpa, raspa, arranha, escarva, escarifica e escarafuncha com as unhas. Com o nó dos dedos, bate.
A mão abre a ferida e a pensa. Eriça o pelo e o alisa. Entrança e desentrança o cabelo. Enruga e desenruga o papel e o pano. Unge e esconjura, asperge e exorciza.
Acusa com o índex, aplaude com as palmas, protege com a concha. Faz viver alçando o polegar; baixando-o, manda matar.
Mede com o palmo, sopesa com a palma.
Aponta com gestos o eu, o tu, o ele; o aqui, o aí, o ali; o hoje, o ontem, o amanhã; o pouco, o muito, o mais ou menos; o um, o dois, o três, os números até dez e os seus múltiplos e quebrados. O não, o nunca, o nada.
É voz do mudo, é voz do surdo, é leitura do cego.
Faz levantar a voz, amaina o vozerio, impõe silêncio. Saúda o amigo balançando leve ao lado da cabeça e, no mesmo aceno, estira o braço e diz adeus. Urge e manda parar. Traz ao mundo a criança, esgana o inimigo.
Ensaboa a roupa, esfrega, torce, enxágua, estende-a ao sol, recolhe-a dos varais, desfaz-lhe as pregas, dobra-a, guarda-a.
A mão prepara o alimento. Debulha o grão, depela o legume, desfolha a verdura, descama o peixe, depena a ave e a desossa. Limpa. Espreme até extrair o suco. Piloa de punho fechado, corta em quina, mistura, amassa, sova, espalma, enrola, amacia, unta, recobre, enfarinha, entrouxa, enforma, desenforma, polvilha, guarnece, afeita, serve.
A mão joga a bola e apanha, apara e rebate. Soergue-a e deixa-a cair.
A mão faz som: bate na perna e no peito, marca o compasso, percute o tambor e o pandeiro, batuca, estala as asas das castanholas, dedilha as cordas da harpa e do violão, dedilha as teclas do cravo e do piano, empunha o arco do violino e do violoncelo, empunha o tubo das madeiras e dos metais. Os dedos cerram e abrem o caminho do sopro que sai pelos furos da flauta, do clarim e do oboé. A mão rege a orquestra.
A mão, portadora do sagrado. As mãos postas oram, palma contra palma ou entrançados os dedos. Com a mão o fiel se persigna. A mão, doadora do sagrado. A mão mistura o sal à água do batismo e asperge o novo cristão; a mão unge de óleo no crisma, enquanto com a destra o padrinho toca no ombro do afilhado; os noivos estendem as mãos para celebrarem o sacramento do amor e dão-se mutuamente os anulares para receber o anel da aliança; a mão absolve do pecado o penitente; as mãos servem o pão da eucaristia ao comungante; as mãos consagram o novo sacerdote; as mãos levam a extrema-unção ao que vai morrer; e ao morto, a bênção e o voto da paz. In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum.
Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúctil anatomia: oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges, falanginhas e falangetas.
Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando na sua contradança de precisões e desejos.
[...]
Na Idade da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava às saliências e reentrâncias da matéria? O artesanato, por força, recua ou decai, e as mãos manobram nas linhas de montagem à distância de seus produtos. Pressionam botões, acionam manivelas, ligam e desligam chaves, puxam e empurram alavancas, controlam painéis, cedendo à máquina tarefas que outrora lhes cabiam. A máquina, dócil e por isso violenta, cumpre exata o que lhe mandam fazer; mas, se poupa o músculo do operário, também sabe cobrar exigindo que vele junto a ela sem cessar; se não, decepa dedos distraídos. Foram oito milhões os acidentes de trabalho só no Brasil de 1975."



BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Ed. Cia das Letras.


E a gente nem se dá conta de tamanha importância... É uma lindeza esse texto(aqui, um recorte), de uma delicadeza comovente. Leia o texto na íntegra. Leia o livro TODO que é extraordinário.

6 comentários:

  1. O trabalho com as mãos é a mais bela expressão da cultura, onde os traços da personalidade, as vivências, a sensibilidade, o olhar peculiar de cada um para as maravilhas do meio circundante é exposto de forma singular. Cada qual é fruto do produto de suas próprias mãos. As impressões deixadas por nossas mãos são a reprodução mais precisa de tudo aquilo que trazemos na alma. A abordagem de Alfredo Bosi sobre o tema, os trabalhos da mão, é elegante e no mínimo visceral.

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  2. De fato o trabalho com as mãos é único, expressa sentimento, seja de dor ou amor. Esse texto desperta a nossa atenção para coisas tão simples feita por partes tão grandiosas "as mãos".
    Simplesmente fantástico esse texto.

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  3. As mãos são capazes de muitas atividades sim, assim como tantas outras partes do nosso “bem bolado” corpo. As máquinas podem executar muitas atividades nossas também, nos poupado tempo, mas não podendo substituir o sentimento que podemos empregar quando executamos algum trabalho com nossas próprias mãos, as máquinas ainda não são capazes de substituir o prazer de colocar as “mãos na massa”. Elas são fruto do trabalho do cérebro humano, mas não são capazes de pensar por nós. É necessário que as comandemos com nossa inteligência, porém quando não estamos atentos, elas causam ferimentos como diz a estatística do final do texto. É engraçado como em situações tão diferentes devemos estar atentos. Há quanto tempo tenho ouvido essa palavra se repetir, estar atento para... observar... Devemos estar atentos ao que nos rodeia, ao nosso vizinho, àquela flor que insiste em nascer no cantinho do muro de nossa casa, a toda beleza que nos cerca gratuitamente todos os dias, às necessidades dos nossos filhos, de nossos amigos, às nossas próprias necessidades também. A cada pequena coisa que pode significar muito a partir do momento em que estamos atentos a elas. Acabo concluindo que observar, estar atento significar estar vivo!.
    Excelente texto!!!

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  4. Hoje lendo este belo texto fico a olhar minhas mãos e pensar, quantas coisas já fizeram, o quanto já escreveu, essas minhas duas companheiras inseparavéis, já vibraram de alegria, já cobriram meus olhos vermelhos de chorar por pessoas queridas, e sei que ainda terão muito para lutar, hoje no presente minhas mãos trabalham, digitam, escrevem, faz pano de prato, pinta, rabisca são minhas asas. No Futuro tenho certeza que estarão comigo, mesmo cansadas não deixaram de me ajudar,obrigado meu Deus pelas belas mãos que me emprestastes nesta jornada, obrigado por esse belo par de asas.

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  5. Oi Heloísa,

    Deixei uma mensagem para você no facebook, mas encontrei seu Blog - que ótimo!
    Gostaria muito que fizesse contato comigo, pois começarei nessa segunda-feira, 10 de fevereiro com um projeto sobre o patrimônio de Ouro Preto com as crianças do segundo período da Escola Mun. Paraíso da Criança - em Lafaiete.
    Sua intervenção em meu projeto seria uma verdadeira pérola!
    Lindo post o seu!
    Paz e luz!
    Mariângela

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  6. Mariângela, adoraria fazer contato com vc mas, como? Vc não deixou nenhum contato, nem mesmo seu sobrenome. Não vi nenhuma mensagem sua no face. SInceramente...ficou difícil mas, se voltar a ler aqui, volte a fazer contato comigo. Abç. Heloisa Davino

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