segunda-feira, 23 de maio de 2011

LIVRO DIDÁTICO - ERRO? ACERTO?

Entre uma polêmica e outra, a gente aprende muito sobre o assunto em pauta e tantos outros. Affonso me fez pensar sobre tudo isso na sua crônica abaixo. Repare...


ERRO DE GRAMÁTICA E GRAMÁTICA DO ERRO

Parece-me equivocada a questão levantada em torno do livro didático Por uma vida melhor, de Heloisa Ramos. Televisão e jornais alardearam que ela quer acabar com a gramática. Dão como exemplo a frase que ela cita “Nós pega o peixe”. De repente surgiram defensores alardeando que a gramática tem que ser respeitada, que existe o certo e o errado.
Isso seria óbvio e tranqüilo se não fosse, primeiro, o seguinte: há muito, a lingüística distingue a norma culta – o português oficial escrito – da norma popular, de extração oral. O modernismo brasileiro incentivou a inclusão dos “erros” orais na linguagem escrita. Manuel Bandeira brada: “Abaixo os puristas/todas as palavras sobretudo os barbarismos universais/todas as construções as sintaxes de exceção”. Nesse sentido, Mário de Andrade escreveu a Gramatiquinha da língua brasileira. Em síntese, contestar a norma é uma das regras da modernidade. E ser criticamente “contemporâneo” não é repetir a ideologia vigente, mas ser capaz de discriminar e categorizar.
É aí que a porca torce o rabo. Esse não é o assunto gramatical, nem apenas escolar. Sem enfoque filosófico e epistemológico, não se chegará a lugar algum. O que é gramática do erro e erro de gramática? As questões, quando mal colocadas, só aumentam a confusão. Portanto, esbocemos uma análise semiológica.
Vivemos numa cultura esquizofrênica. O tempo todo nos estão dizendo que os limites e regras já eram. Olhem a publicidade em torno. Não há nada mais sintomático que a publicidade. Alardeiam que não há fronteira, que a vida, as contas e as chamadas são sem limite. É mentira. Atravessem um sinal vermelho para ver o que acontece. Façam uma redação errada para ver se passam num concurso.
Vejam arte oficialista que predomina nas galerias e museus: qualquer coisa é arte. Outra mentira. Porque os que pregam a “não arte” apenas se apoderaram cinicamente do conceito de arte. Quando surgiu essa polêmica em torno do “nós pega o peixe”, um artista famoso e “contemporâneo” expunha lençóis brancos, com louvores dos jornais. Desde Duchamp(como mostrei em O enigma vazio) que se toma gato por lebre, ou seja, urinol por escultura e até latinhas de merda por obra de arte.
A esquizofrenia contemporânea se alastra. Na TV, todos esses programas, tipo Big Brother, mostram que não há mais distância entre rua e casa, bordel e sala de jantar. Nos gabamos de liquidar com a ideia de centro e periferia, masculino e feminino, esquerda e direita, vida privada e vida pública.
Hoje, nas universidades e cursos de extensão, há uma vulgata de Nietzsche(pobre Nietzsche) e as pessoas dizem com arrogância acadêmica que não há verdade, nem falso nem verdadeiro. Dizem mais: que não há mais autoria, que o autor morreu, o sujeito morreu, que a história acabou.
E a coisa piora, porque circula por aí outra vulgata da física. Entendem errado o “tudo é relativo” de Einstein, entendem errado Heisenberg e Niels Bohr e saem dizendo que tudo é regido pelo acaso, pelo aleatório. Não sabem que existe uma teoria do caos e que o caos não é caótico.
Portanto, no caos dessa discussão, vamos botar um pouco de ordem. E nela entro por outra porta da semiologia, da filosofia e do bom senso. Há regras tanto na natureza quanto na cultura. Graciliano Ramos dizia que a repressão começa com a gramática e vai até a polícia política. Gramática não é uma peça solta. Pertence à área da filosofia da linguagem. Não se pode discutir o erro superficialmente, simplesmente condenando-o. De repente, o erro é uma forma de acertar o caminho.
Já dizia a louca e santa Clarice Lispector: “O erro é um dos meus modos fatais de trabalho. Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade, pois só quando erro é que saio do que conheço e entendo”.
Affonso Romano de Sant’Anna
Jornal Estado de Minas, Caderno Cultura, pg 8 - domingo, 22 de maio de 2011.

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