segunda-feira, 21 de maio de 2012

OUROS PRETOS. PRETO. OUROS.

         
 Ouro Preto. Ouros Pretos. Pretos. Ouros. Múltiplos espaços, territórios, lugares. A cidade-serpente que escorrega, desce e sobe morros. Ladeiras sem fim. Gargantas. Voçorocas gigantes. A serra desceu e inundou de terra o terminal rodoviário. Rocha nua. Pedras de todo tipo, ladeira abaixo, montanha acima. A imensa laje do Itabirito no horizonte, imponente, disputada com a vizinha Mariana. Carros velhos, antigos fusquinhas, até cavaleiros ainda marcham pelas ruas da cidade. E não se surpreenda se receber um bom-dia ou um boa-tarde de quem você nunca viu. A Minas vagarosa e interiorana ainda faz pouso em meio ao fluxo impaciente de turistas e estudantes que dinamizam a vida da cidade. Comentando sobre a cidade partida que vivenciei num percurso até a periferia, uma jornalista me diz que pode haver três Ouro Preto: a dos moradores, a dos estudantes e a dos visitantes. Penso que existem mais. Há espaços ocultos, aqui. Muitos. Bairros pobres que também despencam ladeiras e garimpam morros, mas que sempre ficam mais ao fundo, “do outro lado”... Do núcleo histórico, patrimônio tombado, não se veem. Atrai-me também uma outra Ouro Preto, a mista que, nos limiares do núcleo preservado, contínuo, alterna o velho e o novo, o regrado e o desregrado – onde, de repente, deparamo-nos com uma capela, uma casa ou um simples paredão de pedras centenário, como velhos fantasmas resistindo à compulsão humana pela destruição e pela mudança – ainda que para pior.
            Vejo a Ouro Preto dos pobres e dos ricos, a Ouro Preto dos jovens e dos velhos (como devem sofrer nessa mobilidade constrangida), a Ouro Preto intelectualizada e do senso comum, a Ouro Preto dos que ficam e a dos que, cotidianamente, se vão (e voltam). Vejo a Ouro Preto de outros mineiros, da metrópole e das cidades menores, de outros estados – artistas e empresários, cariocas e paulistas, consigo ver até a Ouro Preto dos orientais e dos bolivianos – sim, porque até bolivianos trabalham aqui. Pra mim, no meu olhar de geógrafo, mais que o ouro ostentatório das igrejas (e aquele que conseguiu permanecer intocado no que sobrou da devastação das montanhas), o que faz a riqueza de Ouro Preto é essa mistura humana, esse imenso potencial de encontros, de novas articulações e territórios que se desenha na teia da cidade. Cruzamentos inusitados que aliam o bom-dia in-esperado do habitante ainda fixado ao seu bairro, olhar atento sobre a vizinhança, com o até breve do visitante ou do migrante temporário que, mesmo com vontade, não sabe se voltará outro dia.
Ouro Preto potencializa novas redes, tramas, conexões. Espaços de criação. Não é à toa que motiva tantas manifestações culturais, eventos, festivais. Que a Ouro Preto petrificada em prédios e ruas oitocentistas, por onde circulam tantos “passageiros”, esteja cada vez mais aberta ao encontro daqueles que, mais “permanentes”, compõem os circuitos ocultos das periferias – “fora do eixo”, como diria uma rede de artistas que encontrei. Se na periferia as ladeiras não oferecem tantas passagens – ao contrário, parecem obrigar o agarrar-se ao solo, marcadas por acessos precários, saídas sem retorno, é nelas que precisamos nos pautar para colocar no mapa um pouco da Ouro Preto inteira, aquela que, mesmo feita de rochas esfaceladas, repentinamente, de modo inesperado, pode nos revelar novos blocos, novas conjugações de formas, a serem refeitas continuamente na luta daqueles que acreditam que a “queda de barreiras”, por mais penosa que seja, faz sempre parte da construção de novos e esperançosos caminhos. Ouro Preto, na penumbra fria de uma neblina de outono, ainda nos faz sonhar.

Rogério Haesbaert, Ouro Preto, 20 de maio de 2012.


*Rogério Haesbaert é convidado da FAOP para proferir a conferência de abertura do Seminário ArteHoje, com o tema Desterritorialização aos Territórios Rede: Dinâmicas Territoriais da Globalização.



2 comentários: