quarta-feira, 20 de março de 2013

EI - LO ENFIM NOVAMENTE




  Como um incansável andarilho que, cumprindo infindável ciclo, faz e refaz longa viagem, visitando sempre as mesmas paisagens, ei-lo, enfim, de volta: o outono. Abra portas e janelas, saia às ruas de braços abertos e acolha-o com simpatia, posto que vem com alegria do pai que retorna sobraçando presentes, semblante iluminado pelo sorriso confiante dos que se sabem amados.
   Conforta o coração quando o esperado não falha nem frustra, e chega, pontual e generoso, no dia e hora previstos. E corresponde não apenas ao esperado, vai além, e surpreende. A simples confirmação da expectativa já nos inunda da esperança de que nem tudo esteja perdido, de que é possível confiar, ainda que seja na intangível rotação da terra.
   Se não flutua na brisa leve, que faz parte do seu cortejo, o outono anda na ponta dos pés, ou desliza no andor de algodão de nuvens que adorna o azul do céu que lhe faz fundo. Chega manso e devagar, pousa suave e discreto sobre o mar, a vegetação e os pássaros. Tão leve e sutil, que apressados e desatentos não costumam notar sua presença. Essa indiferença ao silencioso outono vem do estrépito produzido pelas outras estações. Compreende-se: como não se curvar ao apelo hedonista do verão, deslumbrar-se com a exuberância da primavera e deixar-se seduzir pela promessa de recato do inverno? Todas tem os seus encantos – a natureza é  bela , pródiga, sábia, e ignora o homem, o que a torna também altiva -, mas quem fecha os olhos às nuances do outono nem imagina o que perde. Sem a pretensão de ser cicerone do mundo, nem a ilusão de ser mais que estafeta do óbvio, o cronista pede licença para lembrar que o outono chegou. Atreve-se a tal, porque, perdão, é seu mister. Explico.
   Cronos, o deus grego do tempo, rebaixado a Saturno em Roma, é o padrinho da crônica. O cronista é o arauto dos caprichos do tempo, tambor das suas turbulências e escriba das suas mazelas. E o tempo, sabemos, é poderoso e vário: há o de plantar e o de colher. Tempo de agir e tempo de refletir. Tempo de chegar e tempo de partir. Tempo de amar e tempo de desistir. Há também o tempo das vacas – gordas, magras, sagradas, loucas. E, como disso e poeta e cronista, há o tempo de homens partidos. Ao cronista cabe ruflar tambores se chove, silenciá-los se vira temporal; soprar trombetas se faz sol, dedilhar alaúdes se vira estiagem; gritar aleluias se for farta a colheita, cantar réquiens se minguar. Louvar a vida  se  o homem vence a peste, rogar clemência se a peste o vence. Cabe, enfim, ao cronista, estar presente a cada momento do seu tempo, que é o tempo dos homens. Desde os ancestrais, em todos os lugares, - viajantes e mercadores em tabernas e mercados, vagabundos e aventureiros em palácios e praças, cantores e poetas em portos e estradas: o cronista narra das grandes epopéias às miúdas futricas, com o engenho e a arte que lhe couberam, posto que são todas façanhas dos homens do seu tempo.
   Abra a janela. Seus olhos e todo o seu corpo vão sentir que o outono chegou. Que tudo se modificou sem arrebatamento nem euforia. Uma aragem fresca e úmida vai lamber-lhe o corpo e seus olhos vão descortinar uma suave paisagem num céu azul de nuvens ralas e sol desbotado – distante dos agressivos contrastes que o verão dos trópicos arranca das cores e que há poucos dias ofuscavam o olhar, encharcavam o corpo e engordavam o espírito.
   Em pouco, as árvores estarão cobertas de vermelho-amarelado e as folhas, colhidas pela brisa, descerão em suaves volteios e, exalando delicado perfume, formarão um tapete sobre o asfalto. É a natureza que troca de pele, renova-se, e prepara-se para enfrentar o inverno.
   Outono é serenidade. Tudo se cobre de inefável filó, tecido com réstias de nuvens e céu. Resta no ar uma sutil melancolia, que espontaneamente induz à contemplação e meditação. Outono é Renoir, é Bach, é Proust. É, sobretudo, um convite para voltarmos para dentro de nós mesmos.

Alcione Araújo
Jornal Estado de Minas, 29|03|04

Um comentário:

  1. Obrigada por nos presentear, pois Alcione Araújo é sempre um presente.

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