Como um incansável
andarilho que, cumprindo infindável ciclo, faz e refaz longa viagem, visitando
sempre as mesmas paisagens, ei-lo, enfim, de volta: o outono. Abra portas e
janelas, saia às ruas de braços abertos e acolha-o com simpatia, posto que vem
com alegria do pai que retorna sobraçando presentes, semblante iluminado pelo
sorriso confiante dos que se sabem amados.
Conforta o coração quando o esperado não
falha nem frustra, e chega, pontual e generoso, no dia e hora previstos. E
corresponde não apenas ao esperado, vai além, e surpreende. A simples
confirmação da expectativa já nos inunda da esperança de que nem tudo esteja
perdido, de que é possível confiar, ainda que seja na intangível rotação da
terra.
Se não flutua na brisa leve, que faz parte
do seu cortejo, o outono anda na ponta dos pés, ou desliza no andor de algodão
de nuvens que adorna o azul do céu que lhe faz fundo. Chega manso e devagar,
pousa suave e discreto sobre o mar, a vegetação e os pássaros. Tão leve e
sutil, que apressados e desatentos não costumam notar sua presença. Essa
indiferença ao silencioso outono vem do estrépito produzido pelas outras
estações. Compreende-se: como não se curvar ao apelo hedonista do verão,
deslumbrar-se com a exuberância da primavera e deixar-se seduzir pela promessa
de recato do inverno? Todas tem os seus encantos – a natureza é bela , pródiga, sábia, e ignora o homem, o que
a torna também altiva -, mas quem fecha os olhos às nuances do outono nem
imagina o que perde. Sem a pretensão de ser cicerone do mundo, nem a ilusão de
ser mais que estafeta do óbvio, o cronista pede licença para lembrar que o
outono chegou. Atreve-se a tal, porque, perdão, é seu mister. Explico.
Cronos, o deus grego do tempo, rebaixado a
Saturno em Roma, é o padrinho da crônica. O cronista é o arauto dos caprichos
do tempo, tambor das suas turbulências e escriba das suas mazelas. E o tempo,
sabemos, é poderoso e vário: há o de plantar e o de colher. Tempo de agir e
tempo de refletir. Tempo de chegar e tempo de partir. Tempo de amar e tempo de
desistir. Há também o tempo das vacas – gordas, magras, sagradas, loucas. E,
como disso e poeta e cronista, há o tempo de homens partidos. Ao cronista cabe
ruflar tambores se chove, silenciá-los se vira temporal; soprar trombetas se
faz sol, dedilhar alaúdes se vira estiagem; gritar aleluias se for farta a
colheita, cantar réquiens se minguar. Louvar a vida se o
homem vence a peste, rogar clemência se a peste o vence. Cabe, enfim, ao
cronista, estar presente a cada momento do seu tempo, que é o tempo dos homens.
Desde os ancestrais, em todos os lugares, - viajantes e mercadores em tabernas
e mercados, vagabundos e aventureiros em palácios e praças, cantores e poetas
em portos e estradas: o cronista narra das grandes epopéias às miúdas futricas,
com o engenho e a arte que lhe couberam, posto que são todas façanhas dos
homens do seu tempo.
Abra a janela. Seus olhos e todo o seu corpo
vão sentir que o outono chegou. Que tudo se modificou sem arrebatamento nem
euforia. Uma aragem fresca e úmida vai lamber-lhe o corpo e seus olhos vão
descortinar uma suave paisagem num céu azul de nuvens ralas e sol desbotado –
distante dos agressivos contrastes que o verão dos trópicos arranca das cores e
que há poucos dias ofuscavam o olhar, encharcavam o corpo e engordavam o
espírito.
Em pouco, as árvores estarão cobertas de
vermelho-amarelado e as folhas, colhidas pela brisa, descerão em suaves
volteios e, exalando delicado perfume, formarão um tapete sobre o asfalto. É a
natureza que troca de pele, renova-se, e prepara-se para enfrentar o inverno.
Outono é serenidade. Tudo se cobre de
inefável filó, tecido com réstias de nuvens e céu. Resta no ar uma sutil
melancolia, que espontaneamente induz à contemplação e meditação. Outono é
Renoir, é Bach, é Proust. É, sobretudo, um convite para voltarmos para dentro
de nós mesmos.
Alcione Araújo
Jornal Estado de Minas, 29|03|04
Obrigada por nos presentear, pois Alcione Araújo é sempre um presente.
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