sábado, 5 de dezembro de 2015

TESTAMENTO VITAL por DÉA JANUZZI


O filho arrumou a mochila, tomou banho, aprontou-se e se despediu da mãe para viajar. Antes de sair, a mãe deixou o computador, olhou a camisa que o filho acabara de vestir e observou: “Você vai viajar com essa camisa toda amarrotada?” Ele respondeu que sim. E que a mãe, ao se levantar de manhã, em vez de preparar o café, arrumar a casa, passar roupa ou pensar no almoço, vai escrever crônicas.
Desculpe-me, filho, mas antes de você nascer eu já era jornalista e escritora. Não aprendi serviços domésticos nem fiz curso de culinária, corte e costura. Nunca prometi a você que seria mãe, profissional e dona de casa. Desculpe-me, filho, mas você vai ter que passar as próprias camisas, porque nem ensinar essa tarefa eu sei: é uma missão quase impossível para uma mãe que começou a trabalhar cedo e batalhou para dar a você uma educação que pode parecer estranha agora. Mas que no futuro fará diferença.
Hoje, filho, sou essa mulher partida, dividida, que acorda e vai escrever crônicas em vez de preparar bolos. Desculpe-me, mas desde o colégio eu gostava de escrever, me emocionava mais com palavras do que com panelas. Nunca prometi viver entre quatro paredes preparando pratos saborosos, mas você herdou o caderno de receitas de sua avó para que pudesse fazer a própria alquimia. Viu como foi bom? Hoje você cozinha tão bem! Prefiro a sua comida à minha. Apresentei para você, filho, as minhas fontes preciosas além da cozinha de sua avó. A culinária viva, do dr. Alberto Peribanez, de alimentos verdes e vitalizantes. As feiras de orgânicos e os restaurantes de comida natural, as mil e uma ervas, a construção sustentável, as qualidades do bambu na casa que um dia você vai construir. Apresentei a você o monge Ryotan Tokuda, a comida dos mosteiros zen budistas, a meditação, a imersão na consciência e o Calendário Maia de 28 dias. Apresentei a você, filho, o mundo do futuro.
Ajudei você a conquistar um lugar no século XXI, onde os homens podem rir e chorar, cozinhar, cuidar dos filhos, ser parceiros das mulheres. Não tive tempo de deixar a casa tão limpa, mas ensinei a você a aceitar as diferenças, a respeitar as mulheres, os negros, os índios, o planeta onde mora. Ensinei a você os caminhos da espiritualidade e do sagrado que há em cada um de nós. Desculpe-me, filho, se não eduquei você para um mundo que ainda não existe, mas que está sendo construído pelos parceiros de uma nova jornada. Nunca prometi dar a você a lua, mas o ensinei a ter olhos para vê-la e admirá-la, para vasculhar o universo e conhecer os astros e as constelações. Não se preocupe quando você atravessar a rua e as pessoas estranharem os seus olhos em busca do céu, entre os prédios. Desculpe-me se ensinei a você o mais difícil dos caminhos – o da alma.
Desculpe-me se o prendi nas correntes da poesia e da emoção. Se joguei você na arena da esperança e não da competitividade. Se falei para você sobre cachoeira, mar, permacultura e ecovilas. Se fiz você sonhar com um quintal de ervas perfumadas e comestíveis, ou em fazer o próprio pão. Se apresentei a você o cajado da sabedoria. Se você foi com Manche Maquehu, um índio mapuche, conhecer o Chile e o segredo dos incas. Desculpe-me por gostar de vinho e de flores, de incenso e amizade. De acupuntura e massagem. Desculpe-me por ser liberal em excesso, de não colocar você em uma fôrma de bolo. Desculpe-me se eu desandei, se o bolo embolou.
Desculpe-me se não tenho manual de instrução para educar. Se não tenho limites nem verdades absolutas. Nunca prometi a você o paraíso, porque também tenho meus desertos. Todos os dias, tenho que retirar os galhos secos do meu ser, a aridez da vida neste planeta. Mas é escrevendo que denuncio a devastação interior das pessoas, a falta de cuidado com o outro.
Deixo de herança para você o planeta, o barulho do vento e do mar, as florestas ainda não devastadas, a gratuidade da natureza, as nuvens e o cheiro de mato que você tanto gosta. Deixo-lhe uma vida semeada, cultivada com frutos e flores, girassóis e cactus, abelhas e mel, rosas e espinhos, naufrágios e tempestades, mas também a calmaria. Juro para você, filho: estarei sempre ao alcance do seu coração, onde quer que eu esteja, para que a gente possa conversar como sempre, pois somos cúmplices, amigos.
Assinado: Mãe Terra, que escreve a quatro mãos com a mãe terrena. 

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